quarta-feira, 2 de março de 2011

Malai esperto


Trabalhar em Timor-Leste como defensor público é uma experiência única porque permite refletir sobre o significado de justiça e dos rituais de aplicação da lei perante um tribunal. Outro dia eu conversava com o antropólogo brasileiro Daniel Simião sobre a maneira tradicional de solução de conflitos em Timor-Leste, chamada nahe biti boot (expressão em tétum cuja tradução é “estender a grande esteira”).
Havendo litígio, as partes envolvidas reúnem-se em cerimônia com o chefe da aldeia (ou outra liderança local), discutem sobre o problema e encontram uma saída conciliatória, com pagamentos para ambos os lados. Assim seguem a vida guiados por um método que funciona. Difícil negar: o timorense é um conciliador nato.
Na sociedade brasileira ou norte americana, contudo, o que se observa é um raciocínio diametralmente oposto. Há um estímulo à litigiosidade (lembro que nos EUA existem profissionais que utilizam um método tão agressivo de atuação no tribunal que foi apelidado de rambo litigation ou rambo lawyering).
São incontáveis as discussões banais que terminam perante um juiz. O Judiciário brasileiro (mesmo os “juizados de pequenas causas”) está à beira de um colapso. E tenta desesperadamente colocar em prática formas alternativas de solução de conflitos, como a conciliação e a mediação. Querem reforçar por lá o que já tem sido feito aqui em Timor há tantos anos.
Quando analiso a questão por este ângulo, vejo que submeter a qualquer custo um povo acostumado ao nahe biti boot às regras legais que disciplinam a atuação de um tribunal (nos moldes estritamente ocidentais), representa não apenas agressiva ingerência cultural. Revela também arrogância por parte do estrangeiro. Quanta ilusão falar em acusação, contestação ou consciência da ilicitude para o homem da montanha!
Facílimo acreditar que o velho modelo judicial baseado na lei supera o sistema tradicional praticado pelo povo timorense. Difícil para quem vem de fora é perceber que as pessoas daqui têm suas vidas afetadas por conflitos da mesma forma que o resto do mundo. Se em regra buscam a conciliação não é porque se sentem menos abaladas. Esse erro eu cometi quando participei da minha primeira audiência criminal e a vítima, abusada sexualmente, fez acordo com a família do autor. Tudo estava resolvido e eu minimizei o que ela estava sentindo. Porque vim de um sociedade que resolve todos os seus problemas na briga (nem que essa briga seja intermediada pelo juiz).
A maneira como o timorense enfrenta seus conflitos deve ser compreendida pelo estrangeiro e tida como exemplo para diminuir a litigiosidade que já se tornou banal em países supostamente civilizados.

Um comentário:

  1. Deve ser muito difícil para o cidadão timorense, ter pessoas com culturas tão diferentes das suas, comandarem, mesmo que indiretamente, seu país. Bjos,

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