domingo, 16 de janeiro de 2011

Ano novo ou tudo de novo? (Texto da Beatriz)


Não é porque é novo que tem de ser diferente do que já foi. Pode ser, não importa se bom ou ruim, simples repetição do passado. Pode ser o mesmo outra vez.

É bem verdade que todo gesto, todo ato ou movimento é único e singular, se introduzido o dado do tempo. O passado, tal como se deu, é irrepetível. Nesse sentido, tudo é criação ex novo, até mesmo aquilo que se repete. A repetição só é possível porque há um agora, um presente que sucede ao passado, e um futuro que só se realiza como presente e, desde logo, se converte em passado. Hábito é isso, reprodução, no presente, daquilo que já não é (mas que pode voltar a ser, pela repetição). Por isso é também constância e continuidade. É novo, como novo é todo ato a seu tempo, mas não encerra novidade. Não faz diferença com o que foi, não traz mudança, nada transforma, ao contrário, anseia a estabilidade. É permanência, costume. Interessante que hábito e costume também significam roupa, traje, vestimenta. Vertir-se, trajar-se também é, por sua vez, um hábito.

Antenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Brasileira, Rio de Janeiro, s/e, 1932, primeira e única edição, exemplar nº 838) informa que a palavra vem do latim hatibu, que significa "estado, modo de ser, postura, aspecto, trajo". Aurélio Buarque de Holanda (Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) também traz essas definições de hábito. Interessa-nos a primeira: "disposição duradoura adquirida pela repetição frequente de um ato, uso, costume".

A sucessão temporal proporciona a experiência da repetição, até a mesmice, a invariabilidade, a inalterabilidade, a linearidade, ou, ao contrário, torna possível a introdução de algo novo, de rompimento com o passado, de fratura, de interrupção do hábito, de transformação – e, de novo, estabilização que, mais adiante, outra ruptura...

A experiência do tempo mostra que a permanência não existe, mas isso não nos impede de desejá-la ardentemente, a começar pela nossa própria existência. A instabilidade atormenta e a ela não nos acostumamos. O passar do tempo se converte em finitude e, com isso, impossibilidade de voltar a ser. O sentido trágico da condição humana é evidente: a ausência de futuro – e a impossibilidade de retorno ao passado, a irreversibilidade, de que nos fala Prigogine – é o fim de toda repetição. Inventamos formas de evasão do tempo, ritualizamos a criação, construímos a regra, buscamos regularidades no universo, seja por intermédio da ciência ou da magia. Janine Ribeiro já disse que a astrologia e a ciência têm a mesma pretensão de prever o futuro e controlar os fatos, antecipando o que está por vir, aniquilando a surpresa. O tempo é a mais dinâmica de todas as regularidades e a mais reveladora prova da finitude, da provisoriedade. É nele que desaparecemos, somos provisórios. Contamos o tempo que nos foge a cada segundo, porque necessitamos da previsão, e nem por isso deixamos de querer eternizá-lo, aprisioná-lo. Repetir é um modo de parar o tempo. Por isso, "cumpre imaginar Sísifo feliz", como diz Albert Camus, lembrado por Roberto Aguiar em seu texto genial, Os filhos da flexa do tempo.

A memória é uma estratégia de estabilização do fato e, com isso, uma forma de vencer o tempo. Trazer de volta o passado é, ao mesmo tempo, nosso triunfo e nosso fardo, porque nem tudo o que está no passado deve ser trazido de volta pela memória ou pela repetição. E, no entanto, talvez pelo hábito, pelo medo diante do novo, do imprevisível, ou pelo vício, pela incapacidade de governar nossas próprias reações, repetimos também aquilo que não queríamos repetir.

Lançados na experiência da vida, desperdiçamos as oportunidades de mudança, não enxergamos as condições que tornam possíveis novas ações e novos resultados. Execramos o erro, o risco e a dificuldade e inventamos mentiras que nos confortam e nos livram de avaliar nossos próprios atos – mas nem por isso somos menos rigorosos com os atos alheios. Amamos a segurança do caminho batido e temos dificuldade de imaginar nossa felicidade fora das certezas. Não fazemos perguntas se não sabemos, antes, as respostas. O que queremos, no fundo, é retornar à segurança do berço, à proteção do útero ou do ovo. Como disse Estanislao Zuleta, "Adão e sobretudo Eva, têm o mérito original de nos ter livrado do paraíso, nosso pecado é que ansiamos regressar a ele".

Somos cegos, de uma cegueira branca como a de que nos fala o Ensaio, de Saramago. Ora, mas se é o desafio que nos mantém vivos! A estabilidade é a morte, o fim de toda busca e de toda interrogação. É paralisia, é repouso. A vida está na possibilidade de mudança, na renovação das incertezas, na diversidade das soluções, na complexidade dos problemas, na abertura para horizontes distintos antes impensáveis, porque fechadas, pelo discurso das verdades universais, as vias das trocas de conhecimento. O malestar que nos provoca a ideia de crise é filho de nossa obsessão por segurança e da nossa afeição pelo dogma, que não pode ser superado, ainda segundo E. Zuleta, sem abrir imediatamente a "questão essencial da angústia", a perda da identidade, a questão de se saber "quem sou eu agora que não penso mais assim?"
A crise, segundo Edgar Morin, "se manifesta não somente como fratura no interior de um continuum, perturbação de um sistema até então aparentemente estável, mas também como crescimento das eventualidades, isto é, das incertezas". Mas o processo da crise não apenas desorganiza, também reorganiza – no sentido, talvez, uma nova estabilidade provisória e temporária.

Por que não podemos mudar? Como pretender alguma mudança no mundo que nos cerca se não somos capazes de mudar a nós mesmos? Por que não podemos ser uma metamorfose ambulante? O que precisamos conservar senão a vontade de crescer em equilíbrio com os demais viventes, permitir a vida e resistir ao vazio, recolocando sempre, em constante processo de tensão, a pergunta sobre como estarmos felizes sem ostentarmos tantos símbolos, tantos teres e haveres, sem precisarmos de um guia, sem precisarmos de vassalos, sem ter que nos subordinar a ninguém ou ser por alguém subordinados? Podemos tentar o equilíbrio entre ser águia e ser formiga ao mesmo tempo, como diz o Professor José Carlos Reis. Podemos tentar enxergar de outras janelas ou nos render ao mistério ou nos contentarmos com o conhecimento provisório e precário. O terror não está na mudança, está em nossa falta de coragem para assumir a necessidade da transformação.

Por isso, bem vinda seja a crise! O futuro não está garantido, jamais estará, mas é preciso reverter alguns processos em curso e deflagrar outros, para que a humanidade tenha futuro.

Karl Jaspers que, segundo Hannah Arendt, foi um homem que, "sem jamais fraquejar", se opôs a Hitler desde o começo do regime nazista, dizia que "se o homem quer viver, deve mudar".

Em nome da mudança, desejo a todos um ano crísico, como diz Edgard Morin. Um ano crísico em relação aos processos imbecilizadores da mídia de massas, para que nos seja possível enxergar o mundo fora dos marcos autoritários de um falso consenso; em relação aos processos avassaladores em favor da morte, às pretensões totalizadoras de ódio e de preconceito, envoltas no fundamentalismo religioso e no fanatismo; aos projetos de aniquilamento, de aprisionamento, de exclusão e de guerra; aos projetos de voracidade de lucro e de consumo desenfreado sem respeito à vida no planeta; de poder e de controle global que nos levarão ao desequilíbrio extremo e, certamente, ao desaparecimento.
Beatriz Vargas Ramos

 
Esta e outras maravilhas da língua portuguesa podem ser encontradas no blog da Beatriz, Na sombra da mangueira.

2 comentários:

  1. Bem, Cirilo, espero que não pegue mal eu-euzinha mesma comentar, mas o faço apenas para agradecer sua generosidade de sempre. É uma honra para mim a sua consideração. E sua recomendação é de uma profunda simpatia. Fico emocionada contigo sempre.
    Beijo

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  2. Não pega mal de jeito nenhum! A honra é minha porque seus textos têm enorme valor, provocam SEMPRE reflexão e acredito que devem ser compartilhados com os amigos.
    E é bom para mostrar o significado de domínio completo da nossa língua. Um beijão procê!

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